sexta-feira, 2 de julho de 2010

CIVILIZAÇÃO (Carlos Drummond de Andrade)

O VEADO-GALHEIRO DO NORTE reuniu a família e:
- Rápido, pessoal, vamos dar o pira que isto aqui na Amazônia está cheirando a fumaça!
O veado-mateiro, seu primo, e a capivara, vizinha dos dois, sentiram o mesmo odor e dispararam também. Com pouca sorte: no Maranhão, ouviam-se tiros, em Mato Grosso pairava cheiro de carne assada; em Goiás ...
Lá embaixo, no Rio Grande do Sul, pobre do marrecão-da-patagônia: distraiu-se e seu dia chegou. Não lhe serviu de consolo ver o maçarico-preto e a caturrita tombarem do mesmo galho.
Pelo Brasil inteiro ouve-se : Pum! Pum! Pum! Ou, se preferem versões americanas, de quadrinho: Ban! Tzim! Bzzz! Crash!
São os bichos caindo, as aves baixando em vôo morto, a caça legal, autorizada pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Até 31 de agosto, aproveitem, caçadores. Podem matar a seu gosto. Com apenas três restrições:
1) Cacem por esporte; não cacem para ganhar dinheiro ou por maldade.
2) Evitem caçar certas espécies, que são sagradas.
3) Não cacem muito; limitem o número de animais caçados, para que sempre restem alguns no mato.
Tirante isso, meus prezados, a fauna lhes pertence. Gosta de codorna, e não simplesmente de ovos da dita? Então, vá a Minas, vá a São Paulo, ao Paraná. Estado do Rio, não; codorna sob o governo do Dr. Padilha tem de ser respeitada. É para o inhambu que vai o seu paladar? Não queira prová-Io no Espírito Santo nem na Bahia; dirija-se a São Paulo. Paca, essa boa carne, está pulando à sua disposição no extremo Norte, mas desista desse prato em Santa Catarina. O mesmo bicho é caçável num Estado, incaçável noutro.
Carece de o caçador levar na mão a arma e a portaria do Instituto, para não se enganar, e um bom mapa do Brasil, também. O mesmo recomendo aos bichos: vocês têm que aprender a ler, queridos; ou pelo menos arranjar um radinho de pilha, que os oriente para onde devem se mandar, se residirem em unidade federativa onde foi permitida a matança de vocês. Cuidado com informantes e dedos·duros: qualquer descuido pode ser fatal. Estudem as questões de limites que ainda persistem entre alguns Estados, para evitar o pior. Narceja pousada no galho precisa saber se o tronco fica do lado de cá ou do lado de lá; o brejo que ela aprecia já foi fotogrametrado? Olhe o risco de um tiro legal, procedente de qualquer das margens.
Outro problema, a numeração. Saracura, o caçador licenciado tem direito de liquidar cinco; a n° seis, que andar escondida por perto, não está livre de ser imolada à contagem errônea. Caça e caçador geralmente não chegam a acordo, e que adiantaria mostrar a este a estatística de saracuras sacrificadas? Ele se enganou, pronto: mata seis, mata sete.
Recomendar a presença de fiscal junto ao caçador licenciado, para que não derrube mais de 10 marrecas-pé-encarnado? Não quero pôr em dúvida a integridade dos fiscais de qualquer natureza, mas carne de marreca é tão sublime, quando bem preparada! Vá lá, pode derrubar ainda umas três ou quatro, de pinga. Mas não se esqueça aqui do titio, hem? E a idéia de instalar um computador nos capoeirões brasileiros, para controlar o teto das caçadas, mostra que o surrealismo continua vivo. De qualquer modo, fiquem sabendo: caçar 10 irerês é esportivo; 11, já constitui abuso contra a natureza. Quer acabar com a raça?
- Mas eu sou campeão de caça a irerê e queria bater meu recorde!
- Calma, amizade. Você ainda tem direito a abater 10 inhambus-xororós, dois inhambus-canela-roxa, 10 codornas... Seu clube lhe dará novos troféus:
Bem, a caça é permitida nas regiões e períodos em que não se desenvolve a fase de reprodução das espécies. É princípio universal, a que se submete nosso Código de Caça. Respeita-se a reprodução, para que ela assegure a estocagem de animais a serem caçados por esporte, sob tais e quais condições restritivas. Garante-se a natureza, por um lado; por outro, garante-se o esporte, que desfalca a natureza. Mas que esporte é esse, fundado na morte de animais inocentes, e não na alegria da vida, que dá sentido às competições da força e da higidez?
Palavra que não entendo. Não o entendia Paul Léautaud, que se rejubilava quando o tiro destinado à caça pegava a nádega de outro caçador. Não chego a tanto, mas suspeito que falta ainda muito para se inscrever nos dicionários o exato sentido da palavra civilização.

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