sexta-feira, 7 de maio de 2010

VIADUTOS (Carlos Drummond de Andrade)

– Endereço do colega?
– Viaduto São Sebastião, pilastra n.º 4, lado esquerdo, na Presidente Vargas. Apareça por lá.
– Ótimo. Vou aparecer, mas agora não. Estou de mudança.
– Se não for indiscrição, pode-se saber para onde?
– Não sei ainda. Moro no viaduto de Japeri, aliás muito confortável, mas compreende, né? Um pouco longe. Procuro um na cidade.
– Já experimentou Botafogo?
– Fui eu que inaugurei. Era uma habitação deliciosa, aliás duas, com vista panorâmica, banho de mar em frente, etc. Mas sabe o que aconteceu: estragaram aquilo, botaram jardins, espelhos d’água…
– É. Estão sempre atrapalhando.
– Espelho d’água, vá lá, serve para a toalete. Mas o jardim…
– Jardim não é bom para secar a roupa?
– Em tese. Mas há sempre um guarda querendo defender as plantas, implicando com os moradores.
– Tem razão. Na vida, o essencial é paz.
– Também acho. Folgo em saber que estamos de acordo neste ponto fundamental. Mas, sabe? Os viadutos estão difíceis.
– É, ouço dizer. Mesmo havendo tantos por aí?
– Todos lotados. Dizem que onde cabem três cabe mais um. Eu discordo. Por essa teoria, onde cabem 20, 50, mil, cabe sempre mais um. E os viadutos tornam-se inabitáveis, ficam iguaizinhos aos edifícios, o que, francamente, caro colega, não é vantagem.
– Vejo que o amigo aprecia a solidão.
– Solidão a dois, a três, eu aprecio, quando os colegas sabem viver em comunidade. A gente não está nem sozinha nem com multidão. Equilibrado. Cada um cuida de si, e reina ordem no viaduto. O que eu não suporto é viaduto desorganizado. Sou muito exigente neste particular.
– Estou vendo que lá em Japeri o senhor deve ser uma espécie de síndico.
– Que síndico? Quem falou em síndico? Nós três nos autogovernamos. Eu, que atendo por Quilo-e-Meio, seu criado (não cheguei a crescer muito, em todo caso não me chamam de Meio-Quilo), o Vai-por-Mim e a Marlene Garbo.
– Por que Marlene Garbo? Não é acumulação?
– Por que ela tem as pernas de Marlene Dietrich e o jeito da Greta Garbo. A combinação é genial, sabe? Tem vezes que a gente chama ela de Margá. Santa mulher. Já teve os tubos, viajou por aí, não guardou nem pinta de grã-finagem.
– E o Vai-por-Mim?
– Não tenho queixa dele. Só que anda com mania de jogar na Bolsa, nosso viaduto está cheio de balancetes, prospectos, gráficos. Tenho medo que ele fique rico, daí a pouco começa a botar banca.
– Dê uns conselhos ao Vai-por-Mim.
– Dei. Ele sonha em descobrir jazida de tório em Japeri, para fundar o Banco Nacional de Habitação em Viadutos, Pontes e Congêneres. Não deu sorte na Loteca, hoje diz que o plá é investir. Eu preveni a ele: Ficando rico, a primeira coisa que vai fazer é cobrar aluguel nos viadutos.
– Os viadutos são do Estado.
– E daí? Até o Estado perceber, ele já dobrou a fortuna. O colega desculpe, mas isso é safanagem.
– Diga ao Vai-por-Mim que apareça aqui no São Sebastião, para batermos um papo.
– Vai tirar essas minhocas da cabeça dele?
– Não sei… A idéia me parece aproveitável. A socialização dos viadutos, uma cadeia nacional de Hilton dos homens e mulheres independentes…Viadutos bem funcionais, o abrigo ao alcance de todos… Um problema social que se resolve…
– Sem essa! Eu a querer salvar o Vai-por-Mim, e o colega pensando em tirar partido da loucura dele! Acabando com a paz, a relativa paz que ainda se goza nos viadutos! Não conte comigo e passe muito mal, traidor!

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