- COMO DIZ O OUTRO ...
Que outro? E desde quando ele se chama Outro? Estranho nome, este, que não identifica, não responsabiliza, não consta de nenhum registro civil: Outro, nascido em tal data, em tal lugar, do sexo masculino. Porque nunca se diz: Como diz a outra? A outra não diz nada, limita-se a ouvir o Outro, se é que o ouve?
Depois, não é só um Outro. São muitos, são vagos, são indefinidos: os Outros. Que é que os outros vão dizer? Mas o outros nunca dizem nada, apenas se receia que eles digam alguma coisa desabonadora ou cruel. Quem costuma dizer, e é antes abonador, é o Outro. Mas abona escondido, sopra ou insinua a sentença oportuna, para que ela corra mundo sem que o Outro, pessoalmente, se comprometa. O Outro tem medo?
Tudo indica que o Outro é cúmplice de quem diz: Como diz o outro. Fornece-lhe juizos, anexins, glosas para circunstâncias que requeiram este ou aquele enunciado. Mas pode ser também que o Outro seja senhor daquele que diz que ele disse. Senhor poderoso e incógnito, que manda seus súditos semearem pelo mundo aquilo que convém ser semeado, visando a determinadas colheitas - de quê? Só o Outro sabe.
Mas o Outro existe realmente? Não será inventado na hora e no calor do interesse, da imaginação, do acaso? Quem é o Outro? Um sábio? Sabido? Pseudônimo, heterônimo? Quem sabe se o Outro não serei eu mesmo, como pretendia um outro, este conhecido, que disse: Je est un autre?
A idéia de eu ser o Outro de mim mesmo, ou de outro Outro, ou mesmo de outríssimos Outros, não chega a constituir matéria de meditação transcendental, na fórmula do Maharishi Mahesh Yogi. A todo instante sinto que há vários, senão muitos outros em mim, se bem que nenhum deles seja o tal Outro que costuma dizer coisas repetidas por outros. Também não ignoro que os outros me acham o outro, que em qualquer lugar, situação ou momento sou sempre o outro dos outros, e o serei sempre, inapelavelmente. Mas em nenhum momento, situação ou lugar terei sido nem serei jamais o misterioso e sábio Outro, de quem se repetem as palavras sábias ou simplesmente sabidas, do "como diz o outro".
Minha alteridade é incontroversa, com relação aos demais habitantes da Terra, assim como a alteridade dos demais habitantes com relação ao meu eu. Mas isso, multiplicando ao infinito os outros, e fazendo com que todos os sejamos cada vez mais, não chega a anular o sentimento do eu, que luta ferozmente, não digo por se afirmar: simplesmente por se saber existir, dentro do outrismo geral.
E por que o Outro diz certas coisas e omite outras, por que varia tanto no que diz conforme a boca a repeti-Io? O Outro é incoerente, na China emite conceitos totalmente diversos dos que são divulgados em Mato Grosso. Nesta mesma cidade do Rio, o Outro varia com os bairros, as profissões, o nível de cultura. O Outro são outros, quantos, quais?
Estou exagere tudo. A verdade é que o Outro não é muito citado ultimamente. Citam-se mais Barthes, Mendilov, Jakobson, Lévi-Strauss, Baccherozzo, Kastchen. Menos, Sartre, Toynbee, Lukács. O Outro, menos ainda, e há até alguns encabulados, que, arriscando-se a citá-Io, recorrem ao pretérito:
- Como dizia o outro ...
Dizia. Já não diz. Ou diz pouco, prudentemente parco, na maioria das vezes não diz nada. Está secando essa outrora fértil reserva de opiniões que fazia autoridade, sob a capa do anonimato.
Que diz agora o Outro? Quem é capaz de sabê-Io e transmiti-Io, se o Outro se fechou em copas e desmentirá tudo quanto se disser que ele disse? O Outro diz que vai chover? O Outro é capaz de desmentir e ameaçar-nos com processo, pois claro que a afirmação pluvial envolve delicadas responsabilidades, podendo espalhar a insegurança nacional. Por que vai chover? Chover é bom ou perigoso? O Outro garante que a chuva não tem segunda ou quinta intenção? O Outro pensou bem antes de dizer algo sobre a chuva?
Não. A frase correta seria:
- Como não diz o outro.
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