sexta-feira, 28 de maio de 2010

CONTINUANDO A MENTIR (Carlos Drummond de Andrade)

OUTRO DIA, fulano ia pela calçada ...
Minto. Evidentemente, não ia pela calçada, lugar por onde não se vai, nem vem, a menos que se possua carro, e esta utilidade não figura em sua declaração de bens ao Imposto de Renda.
Fulano ia pois pela rua, lugar hoje mais propício ao pedestre ...
Outra mentira. Como se a rua houvesse tomado o papel da calçada, depois que a calçada tomou o papel da rua. Ora, todos sabemos que calçada e rua são a mesma coisa, na cidade moderna, e essa coisa é defesa ao cidadão imotorizado.
Portanto, Fulano não ia por lugar algum, mas este é outro beliscão à verdade, pois dessa ou daquela maneira, sem ser em terra ou no ar, não se sabe como, nem adianta saber, as pessoas continuam indo, andando, providenciando, vivendo.
Milagre dos tempos. Eu vou, tu vais, ele vai. Não há lugar para ninguém, fora de casa; contudo, inventamos lugar - inventar é a solução - e seguimos para nossos negócios, nossos amores, nossas vadiações, nosso tudo e mais alguma coisa.
Ia portanto Fulano - e peço que não me interrompam mais, isto é, peço a mim mesmo para não me interromper; pois estou cansado de começar e recomeçar retificando os arranhões à verdade, lei suprema da vida. Suprema? Ora, eis-me de novo mentindo e, o que é mais grave, mentindo em homenagem à verdade, para atribuir-lhe supremacia que nunca teve entre os homens.
Já me perturbo e, francamente, não sei como continuar, se apenas comecei e nem sequer este começo está assentado em terreno sólido, o terreno das afirmações indiscutíveis. Bem sei que Fulano é algo insofismável em sua realidade física; sei perfeitamente que ele ia de qualquer maneira, outro dia, a algum fim dele sabido e que não interessa investigar. Ou interessa? Será um conspirador contra as instituições, ele que toda a vida conheci morigerado, temente a Deus e ao governo, cumpridor de deveres e partidário da conciliação universal? Será que ultimamente ... ?
Sim, que ia ele fazer aquele dia, pois alguma coisa na certa ia fazer, e quem me garante que não mentira a vida inteira para mim, para o Imposto de Renda em particular e para as nações em geral? Não seria ele um dos agentes de Watergate, espião universal, disfarçado na modesta epiderme fulânica, para insinuar-se em meu bairro, onde não há segredos de Estado, e precisamente aí detectá-los, pois os segredos estão onde não podiam estar, e onde são encontrados é onde nunca estiveram ocultos?
Quem diria, hem? Conhecia-o há tantos anos, tanto chope bebemos juntos, e no fundo do chope estava a verdade. F-07, agente multinacional, infiltrado no coração da minha confiança. Sabia mentir, o safado. Ou sou eu que, suspeitando de sua dobrez, de resto sem o mínimo indício, ou por isso mesmo, pus-me a fantasiá-Io assim. Menti, supondo que talvez me mentisse. Resta-lhe o direito de mentir por sua vez, acusando-me de ladrão do cofre das almas na igreja do Carmo, que para assaltante de supermercado não dou, seria mentira demais. Sinto-me inerme, às mãos de Fulano, que tem o direito de atribuir-me as piores coisas, os atos mais estranhos, numerados ou não, as ações cometidas e as simplesmente pensadas, que são as mais graves de todas. Até o ponto de eu dizer-lhe: "Chega. Pois isto que acabas de dizer a meu respeito infelizmente é verdade, e sei lá o que descobrirás depois."
Paro aqui. Não direi que ele se dirigia ao Colégio Eleitoral, ou ao cursinho prévio para habilitar-se ao vestibular do dito Colégio, nem se existem vagas nesse estabelecimento e se o currículo estimula as competências. O que foi fazer Fulano outro dia, não há mais espaço, nem na calçada nem na rua nem no papel para narrá-Io ou adivinhá-lo, Esta é que é a verdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário